Fui até a casa da Elis, da Vandréa, do Akin e da Aluá, num final de semana de junho em São Paulo. Quando cheguei, sendo recepcionada pelas crianças já contando histórias e mostrando as plantas, cômodos e coisas da casa, me deparei com a alegria contagiante do que iriam fazer aquele dia: balões e decorações para o Dia de São João, que comemoraram com uma grande festa junina.
Tomamos um café e depois as fotos começaram, com todos muito empenhados na decoração. Akin e Aluá são crianças afro-indígenas, do povo Xukurus, assim como Elis e possuem muita clareza de pertencerem ao povo indígena. A família é encantada pelo carnaval, pela cultura popular, adoram os bichos e as simbologias. Estudam tupi guarani online, além de frequentar espaços culturais em São Paulo.
Adoram acolher amigos e parentes em casa. Durante a nossa conversa, inclusive, contam que vão receber amigos do povo Pataxós que estão chegando para realizar um trabalho com as crianças na escola. Para Vandréa, o amor está nessa forma que o cotidiano se reinventa, nos detalhes desenhados, pintados (que inclusive representam os colegas deles cada um como um pássaro) no momento que cozinham as comidas que as crianças gostam, na forma que constroem o lar.
Elis é natural de Recife, mora em São Paulo desde 2007. No momento da documentação, estava com 36 anos. Trabalha enquanto professora de educação infantil na rede pública da cidade e também desenvolveu um projeto sobre saberes ancestrais com os seus alunos, onde cada um leva a história da sua família. Elis fala sobre a xenofobia e o racismo que sofreu quando chegou e que por isso faz de tudo para que as crianças se sintam parte das suas culturas originárias e não se sintam excluídas na cidade. Assim, usam muito os grafismos, desenham, pintam as roupas, cozinham juntos e fazem esse resgate cultural.
Vandréa é natural de São Paulo. No momento da documentação estava com 42 anos, trabalhando enquanto médica de família e comunidade, que acredita ser uma forma humana de olhar para a família. Trabalhou a maior parte da sua vida no SUS, hoje em dia está em um hospital privado.
Akin e Aluá estão com 4 anos no momento da documentação. Possuem uma diferença de idade de alguns meses, sendo Akin nascido em outubro e Aluá em janeiro.
Quando Elis e Vandréa se conheceram, ela trabalhava no terceiro setor com formação de professores na área de direitos humanos, nos eixos de formação de direitos sexuais e reprodutivos, políticas públicas de juventude, área de educação e gênero. Fazia um trabalho de acompanhar alguns estados, e não imaginava que Vandréa trabalhava com coisas semelhantes, também viajando e acompanhando estados. Chegaram a fazer viagens que envolviam amigos em comum, mas Elis viajou para trabalhos com indígenas e Vandréa para trabalhos com famílias ribeirinhas.
Foi num aplicativo de relacionamentos que deram ‘match’, mas já tinham muitos amigos em comum por conta desses trabalhos. Sentem que cruzavam suas histórias o tempo todo, por estarem nos lugares com essas pessoas em comum, mas que ainda não tinham se esbarrado.
Naquela época, Elis já estava em processo de adoção. Desejava adotar individualmente, vivia enquanto uma mulher solteira que sempre desejou a maternidade.
Quando se encontraram pessoalmente e começaram a se apaixonar uma pela outra, Vandréa estava procurando um apartamento para se mudar e ao conhecer o prédio que a Elis morava, se encantou. Decidiu alugar um apartamento no mesmo local, então moravam em andares de distância.
Mesmo morando no mesmo prédio, elas não se viam com a frequência que desejavam. Trabalhavam muito nas missões em comunidades quilombolas na Bahia, então começaram um relacionamento quase que à distância.
Nessa época, já falavam muito sobre a maternidade. Elis decidiu encerrar o processo de adoção solo, uns meses depois elas marcaram uma consulta numa clínica de fertilização e decidiram morar no mesmo apartamento, já não fazia mais sentido os dois aluguéis mensais.
Tiveram que lidar com a papelada na hora da gestação e entenderam a importância do casamento. Vandréa não queria só uma união estável, se fosse para estarem casadas, desejava uma festa e sentia que elas mereciam a celebração. Mesmo sem dinheiro, fizeram o evento acontecer e os amigos ajudaram em tudo - a festa aconteceu num terreiro de umbanda, os padrinhos eram os amigos em comum (que também trabalhavam com comunicação e fizeram as mídias do evento) e tudo foi organizado em 3 meses, de forma muito autónoma. A cerimônia aconteceu em 2017.
Logo depois do casamento, as duas engravidaram. Vandréa não queria ceder, achava uma loucura a ideia das duas ficarem grávidas ao mesmo tempo, mas com o tempo se convenceu. Por nunca menstruarem juntas, ela faria o processo primeiro, depois a Elis.
Quando finalmente menstruaram juntas, entenderam que era um sinal. Foi inclusive no aniversário da Vandréa que deram início ao processo que deu certo - as duas engravidaram. Um tempo depois, viajaram de férias e durante a viagem Elis teve um sangramento muito forte, perdendo o bebê.
Foi um baque muito grande, a perda reviveu outros lutos que já teve na família, ficou muito mal. Era difícil viver a dicotomia do luto e da outra vida se gerando, as pessoas em geral não entendiam e sempre tentavam consolar dizendo ou que era muito pequeno, como se não fosse uma vida ainda, ou para valorizarem o bebê que estava na barriga da Vandréa. Elis não desistiu, tentou novamente (e por isso o Akin e a Aluá possuem o intervalo de idade). Conseguiu engravidar, eram gêmeos, mas um não se desenvolveu nessa nova gestação. Por fim, nasceu Aluá, e são muito gratas pelas gestações e pelos filhos maravilhosos que possuem hoje em dia.
Elis enxerga o amor como o grande construtor do mundo que elas querem para os filhos. Seja na militância no trabalho, na vida, em tudo o que fazem tentando tornar o mundo melhor, é lá que o amor está. Deseja que as pessoas sejam mais humanitárias - e acredita ser esse o fator que aproximou elas desde o primeiro momento. Seus propósitos se unem, querem mudar as coisas na mesma proporção e sabem que podem contar uma com a outra.
Nessa confiança está o partilhar das felicidades e das dores. Citam situações em que chegam do trabalho, falam o que aconteceu no dia, choram, riem, se indignam juntas. Compartilham sobre racismo, questões políticas, se movimentam. Elis explica que “A liberdade só é possível quando conseguimos abrir as asas sem ferir os outros” e que isso nem sempre é possível ou fácil. Aprende muito com as crianças e com o quanto elas estão dispostas a serem encantadoras.
Por fim, entendem que o processo de educar é muito desafiador, como fazer com que não sejam machistas, racistas, que tenham respeito. Falam sobre o Akin ter cabelo grande, unha colorida, e preparam ele para enfrentar o machismo que vai existir da porta para fora de casa. Além disso, educar é também preparar os professores e a própria sociedade para lidar com a liberdade deles.